Em pé: da Esquerda p/ direita: Rubem Braga, do Diário Carioca; Frank Norall, da Coordenação de Assuntos Interamericanos; Thassilo Mitke, da Agência Nacional; henryBagley, da Associated Press; Raul Brandão, do Correio da Manhã, e Horácio Gusmão Coelho, fotografo da FEB. Abaixados: Allan Fisher (autor da foto), fotografo da Coordenação de Assuntos Interamericanos; Joel Silveira, dos Diários Associados; Egydio Squeff, de O Globo e Fernando Stamatoi, cineastra.
Rubem Braga ingressou nas fileiras da Força Expedicionária Brasileira como correspondente de guerra do “Diário Carioca”, contrariando a posição adotada pelo presidente Getúlio Vargas de só enviar jornalistas contratados pela “Agência Nacional”.
Atuou no “front”, com outros jornalistas brasileiros e concretizou laços de amizade com o seu companheiro Joel Silveira, dos “Diários“ Associados, laços que durou até seu falecimento. Fumante inveterado na campanha da Itália ganhou uma frase de Joel Silveira em seu livro “O Inverno da Guerra”. Joel relata que Rubem “antes de deixar seu aconchego, (slleeping-bags), já estava fumando o primeiro dos seus não sei quantos cigarros”... “Comia pouco, quase nada”
Sua participação na guerra lhe rendeu o livro “Com a FEB na Itália” constituído de ricas narrativas da guerra, desde o embarque no navio General Meigs no segundo escalão da Força Expedicionária Brasileira, em setembro de 1944, no porto do Rio de Janeiro, até o final da Campanha Brasileira em solo italiano.
Antes, de seu embarque para compor o quadro de Correspondentes de Guerra brasileiros demonstrava sua aversão contra o nazi-fascismo. Em seu livro “O Morro do Isolamento’ escrito antes do embarque para a Itália, faz uma longa dedicatória a Hitler: “Ao grande cão escandaloso e àqueles que trabalham mesquinhamente contra o amanhã, aos carniceiros prudentes e às velhas aves de rapina barrigudas e aos vendedores de água podre, aos que separam os homens pela raça e pelos privilégios; aos que aborrecem e temem a voz do homem simples e o vento do mar; e aos urubus, aos urubus!“.
Sobre a FEB traça alguns comentários sobre sua formação, recrutamento, treinamento da tropa, despreparo físico e psicológico. Mas, tece elogios a bravura, determinação, coragem do “Pracinha“ brasileiro.
Suas crônicas durante ao Conflito Armada destacam-se: “A Menina Silvana” e “O Cristo Morto”. Na última descreve um bombardeio a uma igrejinha, localizada próxima à Gaggio Montano, em seu livro “Crônicas de Guerra”
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CRISTO MORTO
“Depois de uns vinte minutos você vai à frente à esquerda, um morro com uma casinha branca isolada, bem no cimo. Ali você sai da estrada e pega a mulateira que tem à sua esquerda. Dobre logo antes da capelinha arrebentada. Tome cuidado com o carro porque ali o campo está minado.
Ouvindo essas indicações, saí pensando comigo mesmo que “uma capelinha arrebentada” é uma das indicações mais vagas que se pode dar a um viajante nesta região da Itália. È costume plantar igreja no alto dos montes. Quando vem a guerra, essas igrejas são freqüentemente usadas como Posto de Observação, e um PO é sempre um alvo freqüentado pelas granadas de Artilharia.
Tenho visitado muitas igrejas. Nos dois últimos dias visitei três. A primeira está situada num dos lugares mais belos do mundo, e não foi muito arrebentada: mas uma formação de partigiani se instalou lá dentro, onde dorme e faz comida. As imagens não tinham grande interesse, mas os livros em latim do padre (que sumiu) eram todos de 1700. No alto de um confessionário encontrei um quadro a óleo, pintado sobre madeira, que era um ex-voto. Representava toda a família ajoelhada, com velas acessas na mão diante de virgem. A um canto estava escrito: 1601. Tirei o quadro da parede para vê-lo melhor, e logo dois partigianis se apressaram a dizer que se eu quisesse poderia carregar. Não o fiz – menos por escrúpulo do que pelo peso do quadro.
Ali como em tantas igrejas da Itália e mesmo do Brasil, chocou-me o contraste entre o bom gosto às vezes maravilhoso da construção e decoração antiga e o mal gosto escandaloso e ofuscante do clero e dos devotos destes últimos 100 anos. Isso faz com que os altares em funcionamento sejam com freqüência, os lugares mais desagradáveis das Igrejas, com aquela trapalhada de dourados e vermelhos à luz de velas.
Há tempos me levaram para ver um milagre: a Capela dos Ronchidos, ou Ronchidosso, perto de Gaggio Montano a 1045 metros de altitude. Essa capela era um PO alemão que devassa incrivelmente as nossas linhas. Os americanos da 10ª Divisão de Montanha a ocuparam, mas antes disso a Capela recebeu fortes chacoalhadas de 105. Ficou completamente destruída, mas a santa foi encontrada intacta; com uma granada aos pés, uma granada que não explodira.
Mas depois, desse milagre, vi um não-milagre que me pareceu mais impressionante. Uma granada, não sei se “nossa” ou “deles”, atingira uma capelinha poucos quilômetros à direita de Monte Castelo, e pouco mais ao norte. Apenas duas paredes ficaram em pé: o teto e as outras paredes ruíram. Havia uma tela com uma imagem de uma santa que não identifiquei: e no fundo havia uma grande cruz de madeira onde estava pregado um cristo em tamanho natural- refiro-me ao tamanho de Cristo, feito homem, naturalmente.
A cruz pintada de preto, não parecia ter sido atingida. Mas o Cristo de massa cor de carne, fora decapitado por um estilhaço. A mão direita da imagem despregara-se do braço da cruz. E aquele corpo sem cabeça, pendurado a uma só mão, com os joelhos curvados, parecia querer cair a qualquer momento sobre o monte de escombros. Entre as pedras e os tijolos alguém plantara como legenda do quadro, um cartaz simples: “Perigo – Minas”.
E então me ocorreu que não há minas somente para a imprudência dos pés, senão também da cabeça. Não basta andar com todo cuidado.
Lembrei-me de um verso de um poema que um amigo fez há tempos – “Vou soltar minha tristeza no pasto da solidão”. Não se deve soltar: o pasto da solidão é cheio de minas. Tudo isso, podem ser idéias à toa, mas aquele Cristo decapitado depois de crucificado me pareceu mais cristão que a Madona intocada sorrindo com a granada aos pés, entre as ruínas de sua capela. Aquele pobre Cristo de massa, sem cabeça, pendendo para um só lado da cruz me pareceu mais irmão dos homens, na sua postura dolorosa e ridícula. Igual a qualquer morto de guerra. Irmão desses cadáveres de homens arrebentados que tenho visto, e que deixam de ser homens, de ser amigos ou inimigos para ser pobres bichinhos mortos, encolhidos e truncados, vagamente infantis, como bonecos destruídos.
O boneco de Deus estava ali. Perdera não apenas a cabeça, ainda mais. Perdera até a majestade que costuma ter Cristo na sua Cruz, do alto do Seu martírio, dominando-nos do alto de Sua dor.
Não dominava mais nada. Era um pobre boneco arrebentado e mal seguro, numa postura desgraçada e grotesca. Era um morto da guerra.
E aí dos mortos! Que faremos com os mortos? Podem rezar missas aos potes para que as almas deles se salvem, mas eles não querem isso. Eles morreram muito jovens, quando ainda queriam viver mais; por isso não gostaram da guerra.
Enquanto um homem foi dono deste campo e mais daquele campo, e outro homem se curvar jornada após jornada, e não tiver seu nem o chão onde cair morto - esperem a guerra. O homem rico lutará contra outro menos rico, ou não quer ficar ainda menos rico; e o homem pobre lutará por ele, ou contra ele. E os homens subirão até as igrejas, não para ver Deus, mas para ver os outros homens que eles precisam matar. E o Cristo de massa perderá a cabeça outra vez, e não perderá grande coisa, porque o Cristo – Deus, o Cristo – Rei, esse já a perdera há muito tempo”.
Itália – Abril - 1945