Lendo Rubem Braga, volto no tempo, lembro das minhas peraltices, da turma do morro amarrando linha de nylon - que meu pai usava para pesca - de uma árvore a outra na descida da ladeira da Rua Eduardo Gomes, haviam várias árvores de um lado e do outro das calçadas, fazendo pares. Ali, de noite, juntávamos para armar uma arapuca que não tinhamos idéia do perigo que era para os pedestres e motoqueiros que desciam em direção ao Tiro de Guerra.
Eu, era o responsável pelo armamento, ia nas coisas de pesca do meu pai e tirava de lá um carretel de linha de nylon, não sei qual era pior, ou a mais fina ou a mais grossa, mas não escolhia, pegava a primeira que aparecia.
Ficava todo mundo esperando eu chegar, então eu começava a passar a linha de uma árvore a outra várias vezes e toda rua parecia uma teia de aranha preparada para apanhar sua presa, as folhas das árvores cobriam as luzes dos postes que naquela época não tinham o poder de iluminação que possuem hoje, a linha ficava quase que invisível.
Arapuca armada, corríamos todos para o terreno ao lado, na época servia de depósito de lixo para todas as casas da redondeza, do lado da minha casa havia uma árvore enorme, ali era nosso esconderijo. Subíamos todos e ficávamos como morcegos encolhidos escondidos das luzes. Alguns arriscavam esperar na esquina para ver se aproximar a próxima vítima, para depois saírem correndo para tentar subir a árvore-esconderijo.
Quando era um carro, sentíamos como se fosse uma derrota, pois facilmente passaria pela nossa barragem de nylon, quando era moto ou alguém descendo a pé, era diversão garantida, sabíamos do poder que nossa arma possuía era de parar até um cavalo de corrida.
Ficávamos então em silêncio, ouvindo o barulho dos motores ou dos sapatos, de repente, aquele estalar e um berro, sempre um palavrão que ninguém gostaria de ouvir, principalmente a Dona Marilza que era a dona da casa onde ficavam as árvores e criava suas filhas como santinhas.
Assim que ouvíamos o estalar da linha e os gritos, nos segurávamos para não dar sopa para as vítimas, era necessário segurar a risada até os boca-suja irem embora sem nada fazer.
Depois, risada total, e corríamos para ver o resultado e ainda tinha que ter calma para armar a arapuca novamente, era nossa diversão. Não me lembro bem da altura que amarrávamos as linhas, mas criança sempre não tem noção do que está fazendo, penso hoje, que se tivéssemos amarrado as linhas um pouco mais alto, aquele moço que desceu o Penha correndo parecendo o Usain Bolt talvez não tivesse fôlego e nem garganta para gritar o mais alto FILHO DA PUTA que eu já ouvi em toda minha vida!
Com vocês ... Rubem Braga:
A VINGANÇA DE UMA TEIXEIRA
Do livro: A Traição das Elegantes
A TROCA da bola de meia para a bola de borracha foi uma importante evolução técnica do association em nossa rua. Nossa primeira bola de borracha era branca è pequena; um dia, entretanto, apareceu um menino com uma bola maior, de várias cores, belíssima, uma grande bola que seus pais haviam trazido do Rio de Janeiro. Um deslumbramento; dava até pena de chutar. Admiramo-la em silêncio; ela passou de mão em mão; jamais nenhum de nós tinha visto coisa tão linda.
Era natural que as Teixeiras não gostassem quando essa bola partiu uma vidraça. Nós todos sentimos que acontecera algo de terrível. Alguns meninos correram; outros ficaram a certa distância da janela, olhando, trêmulos, mas apesar de tudo dispostos a enfrentar a catástrofe. Apareceu logo uma das Teixeiras, e gritou várias descomposturas. Ficamos todos imóveis, calados, ouvindo, sucumbidos. Ela apanhou a bola e sumiu para dentro de casa. Voltou logo depois e, em nossa frente, executou o castigo terrível: com um grande canivete preto furou a bola, depois cortou-a em duas metades e jogou-a à rua. Nunca nenhum de nós teria podido imaginar um ato de maldade tão revoltante. Choramos de raiva; apareceram mais duas Teixeiras que davam gritos e ameaçavam descer para nos puxar as orelhas. Fugimos.
A reunião foi junto do cajueiro do morro. Nossa primeira idéia de vingança foi quebrar outras vidraças a pedradas. Alguém teve um plano mais engenhoso: dali mesmo, do alto do morro, podíamos quebrar as vidraças com atiradeiras, e assim ninguém nos veria. — Mas elas vão logo dizer que fomos nós!
Alguém informou que as Teixeiras iam todas no dia seguinte para uma festa na fazenda, um casamento ou coisa que o valha. O plano de assalto à casa foi traçado por mim. A casa das Teixeiras dava os fundos para o rio e uma vez, em que passeava de canoa, pescando aqui e ali, eu entrara em seu quintal para roubar carambolas. Havia um cachorro, mas era nosso conhecido, fácil de enganar.
Falou-se muito tempo dos ladrões que tinham arrombado a porta da cozinha da casa das Teixeiras. Um cabo de polícia esteve lá, mas não chegou a nenhuma conclusão. Os ladrões tinham roubado um anel sem muito valor, mas de grande estimação, com monograma, e tinham feito uma desordem tremenda na casa; havia vestidos espalhados pelo chão, um tinteiro e uma caixa de pó-de-arroz entornados em um quarto, sobre uma cama. Falou-se que tinha desaparecido dinheiro, mas era mentira; lembro-me vagamente de uma faca de cozinha, um martelo, uma lata de goiabada; isso foi todo o nosso botim.
O anel foi enterrado em algum lugar no alto do morro; mas alguns dias depois caiu um temporal e houve forte enxurrada; jamais conseguimos encontrar o nosso tesouro secretíssimo, e rasgamos o mapa que havíamos desenhado.
Durante algum tempo as famílias da rua fecharam com mais cuidado as portas e janelas, alguns pais de família saltaram assustados da cama a qualquer ruído, com medo dos ladrões; mas eles não apareceram mais.
Nosso terrível segredo nos deu um grande sentimento de importância, mas nunca mais jogamos futebol diante da casa das Teixeiras. Deixamos de cumprimentar a que abrira a bola com o canivete; mesmo anos depois, já grandes, não lhe dávamos sequer bom-dia. Não sei se foi feliz na existência, e espero que não; se foi, é porque praga de menino não tem força nenhuma.