Segunda, 10 de agosto de 2009, 08h05
Francisco Viana
De São Paulo
A defesa do senador José Sarney no Congresso, uma peça retórica de qualidade, elaborada por quem certamente entende do assunto, fez com que eu lembrasse de um texto de Marcuse, Critique de la tolèrance purê - a Crítica da tolerância repressiva, em português - que se encaixa, à perfeição, no contexto da crise do Senado. O clima de guerra que se instalou entre os senadores passa a impressão de que existe um movimento amplo e inexorável de mudanças. Que, de fato, a crise terá o condão de ampliar os espaços públicos e mudar o rumo do pensamento e da forma de fazer política no país. É uma sensação idêntica àquela que emanou do impeachement de Collor.
Contudo, nada parece mais enganoso. Caminha-se, com o beneplácito da esquerda petista ou pelo menos de parte dela, para uma tolerância que sublima tensões, sem superá-las, que abafa tensões sem explicitá-las. Uma tolerância que não transcende os limites da tolerância formal. Uma tolerância cujo objetivo final é rechaçar a negação da crise de representação e promover a ruína da tensão dialética, fazendo da tolerância não um fim que deságua no exercício transformador da ação política, mas o fim em si mesmo de interesses de grupos e alianças partidárias.
Na sua Crítica da Tolerância repressiva, Marcuse ergue a voz para condenar a tolerância passiva que faz com que esquerda e direita se tornem muito parecidas e, pior do que isso, que leva a esquerda a abrir mão do seu papel de conduzir a práxis histórica no rumo do socialismo. Sua tese aponta , na essência, no rumo do resgate do liberalismo clássico como caminho para ampliar os espaços públicos, promover a igualdade e, com isso, superar os múltiplos impasses que conduzem a verdade como exercício dialético.
Marcuse constata que é o povo que tolera os governantes que, por sua vez, toleram a oposição nos limites fixados pelas autoridades. A tolerância, portanto, se concretiza em torno daquilo que é radicalmente mal é que assegura a coesão da sociedade na sua marcha para a riqueza e a abundância. Tolera-se o cretinismo sistemático do marketing político, tolera-se toda a sorte de fraudes, tolera-se a representação dos suplentes, desprovidos de votos e tolera-se o discurso vazio de esquerda que não se materializa na prática. Consequentemente, no interior da sociedade repressiva que Marcuse denuncia mesmo os movimentos progressistas tendem a se transformar em movimentos não progressistas, de acomodação, digamos assim, uma vez que eles aceitam as regras do jogo. É que está acontecendo no Brasil. A esquerda confunde-se com o liberalismo e corre o risco de perder a identidade. Os ideais que a levaram ao poder estão visivelmente desmoronando e ninguém parece se dar conta de tal realidade.
A crise do Congresso é emblemática. A defesa de Sarney apresenta, acima de tudo, hábil hierarquização de argumentos acondicionadas numa campanha para atribuir as denúncias contra ele ao sensacionalismo da mídia. Em lugar de separar o joio do trigo - aparência de realidade, retórica de fatos concretos -, parte da oposição apressou-se em brindar a excelência da retórica defensiva. Seu núcleo é que não houve malversação de dinheiro público. Coisa estranha: o que é o dinheiro público? O papel moeda, exclusivamente? Quantas são as versões do papel moeda? Qual é a sua materialidade? Empregos? Favorecimentos? Patrimonialismo Político? Verbas secretas? São questões que a oposição e a esquerda, que por inconsistência ou disciplina partidária apóia Sarney, deveria formular. Nada de sério aconteceu por enquanto. E, nesse ambiente, a tolerância passiva (relacionada a idéias estabelecidas ou profundamente enraizadas) e a tolerância ativa (relacionada tanto aos acordos da direita e da esquerda) se afirmam, enquanto a atitude crítica se perde no labirinto de interesses e no suposto imperativo de alianças que sustentem as eleições de 2010 para o partido que se encontra no poder.
Sarney, é bem provável, pode permanecer no cargo. E seus partidários irão comemorar a vitória de uma estratégia tão cuidadosamente elaborada. Não há, dúvida, porém, que o Senado, se isto vier a acontecer, estará condenado de forma inescapável pela história e pela sociedade. Há um divórcio inexorável entre a sociedade e Estado. Um divórcio que se amplia dia após dia. O poder legislativo, que é o cerne do elemento democrático, no Brasil existe não em função da representação legitima e prática, mas em razão de seu significado político formal. Se é que ainda se pode reconhecer tal formalismo. A função legislativa tornou-se a função metafísica do Estado. Não é uma energia prática, mas uma energia teórica. Não formula, nega o real, o corpo soberano da sociedade, o povo.
O fundamental no pensamento marcusiano é superar a irrealidade do conceito de tolerância e considerá-lo como em toda a extensão da realidade. Sem igualdade não há sociedade civil, nem sociedade política. Mas a igualdade depende de participação ativa da esquerda e da sociedade civil, no seu conjunto. É o que não acontece nos dias atuais. A tropa de choque ocupa todos os espaços. Repudia questionamentos, justifica erros graves como se fossem erros normais. Neste domingo, o liberal Estadão publica uma manchete onde se lê: Tropa de choque relativiza até a diferença entre público e privado (p. A8). Esse o cerne da questão: a vitória de Sarney e da tropa de choque, a se confirmar, simboliza a derrota do espaço público para o interesse privado. A sociedade brasileira não pode tolerar esse estado de coisas passivamente.
Não pode tolerar que o fim do período mais negro da nossa história, a ditadura militar ( que só encontra paralelo na ditadura varguista do Estado Novo) não ceda lugar ao renascer da utopia, mas um modelo de sociedade intoxicado por um capitalismo excludente, uma política crassa que só reproduz o passado, amparada em praticas senis, uma visão crassa de alianças e de manutenção do poder. Se ainda estivesse vivo, Marcuse diria que tudo isso não passa de obra de um bando de filisteus ou de pura ingenuidade política. Aliar-se à direita ao custo da perda da própria identidade e ausência completa de senso de realidade. A oposição, por tênue que seja, não pode se deixar hipnotizar por uma peça de retórica - a defesa do senador Sarney. O que está em jogo não é um julgamento literário, mas um julgamento político.
Numa das suas célebres cartas a Rudge, Marx escreveu que "o hábito de festa do liberalismo caiu e o que se vê é o despotismo mais repugnante andando nu nas ruas"¹. O Brasil nunca conheceu o liberalismo clássico. Talvez, tenha soado o momento de viver a experiência, longe de práticas políticas fossilizadas, à direita e à esquerda, que nada oferecem fora do predatório circulo de manutenção do poder oportunista, imune aos interesses da sociedade. Caso contrário, será a democracia que andará despida de ideais pelas ruas. Quando isto acontecer, o caminho para o autoritarismo estará novamente aberto.
¹ Ouvres Fhilosophie, Paris: Gallimard, 1982, p. 357).